A leitura de O Castelo Branco foi bastante atribulada; iniciei no hospital, durante a primeira internação de minha mãe, a interrompi por longos meses e retomei na última semana, avançando aos poucos, algumas páginas apenas por dia, geralmente no caminho para e do trabalho. Confesso que não gosto de ler assim; se fosse possível, dedicaria tempo integral a leitura de cada obra, o que é, naturalmente, impossível. É curioso que, mesmo assim, ou talvez exatamente por isso, conseguia submergir totalmente no universo de Pamuk durante os poucos momentos dedicados ao livro por dia.
Orhan Pamuk é um autor de que gosto bastante e este Castelo Branco foi uma breve e agradável surpresa. O livro é uma narrado como se fosse um manuscrito descoberto por um jovem estudioso; esta é apenas uma das brincadeiras intertextuais que o romance proporciona. Ele conta a história de um italiano tornado escravo de um intelectual na Istambul do império turco-otomano. Fisicamente muito parecidos, acabam, aos poucos, ganhando notoriedade como conselheiros do sultão, até que Hoja (o turco) convence o sultão da construção de uma formidável máquina de guerra que poderá levá-los tanto a ruína quanto ao fracasso absoluto.
Talvez a trama em si seja o aspecto menos importante de O Castelo Branco. Sua força está na caracterização dos dois personagens, no modo como suas personalidades se entrelaçam, no absoluto horror que a prespectiva de fracasso causa a Hoja – de certa forma, ele não chega a ser realmente um intelectual; tanto ele quanto o italiano talvez sejam apenas dois pseudos, notavelmente inteligentes, isso é claro, mas incapazes de organizar o conhecimento adquirido. Em outras palavras, não conseguem fazer ciência, mas técnica. Hoja é mais ambicioso, almeja o posto de astrólogo do sultão, dedica-se a interpretar os seus sonhos de forma a sempre lhe agradar; em determinado momento, o sultão percebe que muito do conhecimento adquirido por Hoja deve-se ao escravo infiel que não abre mão de suas crenças. Em boa parte do livro, Pamuk usa os dois personagens para discutir a identidade e a individualidade, o que seria um desastre em mãos menos habilidosas, mas atinge um clímax surpreendente e desconcertante no último capítulo. É preciso grande atenção para perceber que o autor fala não dos homens daquele tempo, mas também do nosso, de literatura e da identidade da própria Europa e Turquia.
Neste último trecho, ao receber a visita de um cavaleiro que se interessa por sua história, o personagem (não posso revelar qual deles; parte da graça está exatamente aí) narrador retoma a narrativa interrompida havia mais de dez anos. Destaco estes trechos, curiosíssimos:
Sim, concordou ele, devemos buscar o que é estranho e inesperado, como na minha história; sim, talvez fosse esta a única maneira de escapar da exaustiva monotonia deste universo; desde os anos tediosos da infância e da escola, ele sabia que tudo se repetia o tempo todo […]. Ficar procurando quem somos, pensar tanto tempo e com tanta intensidade sobre nós mesmos, só pode nos trazer infelicidade. E era isso que acontecia com os personagens da minha história: era por isso que nunca chegavam a ser eles mesmos, era por isso que aspiravam o tempo todo a ser outra pessoa. […] Pois, de tanto escrevermos histórias deste tipo, de tanto buscar o que era estranho em nós mesmos, nós também correríamos o risco de nos transformar em outras pessoas, e – Deus me livre! – nossos leitores também. Ele nem queria imaginar este universo terrível em que os homens só falassem de si mesmos e das suas peculiaridades, e onde os livros e as histórias só tratassem desse assunto!
Mas era justamente isso que eu queria! E eis por que, […] sentei-me à minha mesa e comecei a escrever este livro. A fim, talvez, de melhor imaginar meus leitores nesse universo terrível que há de vir, fiz todo o possível para incluir no livro tudo o que sabia sobre mim, mas também tudo o que sei sobre Ele, que eu já não podia distinguir de mim.
(Tradução de Sergio Flaksmann, com base nas traduções do turco para o inglês e o francês)
O Castelo Branco, ao que consta, é responsável por iniciar a crescente reputação de Orhan Pamuk como romancista (o livro é de 1979), mas também como um pensador independente, criticado e admirado. Já teve uma edição no Brasil, muito antes do Prêmio Nobel de 2006, mas a versão que li é posterior a isso.